Maíra Fernandes
08/03/2016
Protagonistas em muitas frentes, as mulheres também são a maioria na categoria de catadores de materiais recicláveis no Brasil, é o que aponta o levantamento repassado pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). De acordo com Roberto Rocha, um dos coordenadores do MNCR, mais de 70% desse universo é formado por mulheres. “As mulheres são maioria, é um consenso. E são fundamentais nesse processo de trabalho”, pontua.
O número repassado é coerente com a realidade amostrada pelos dados de um dos maiores programas voltados para a categoria, o Cataforte III – Negócios Sustentáveis em Redes Solidárias, articulado pelo Comitê Interministerial para Inclusão Social e Econômica dos Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis (CIISC) e uma parceria entre a Secretaria-Geral, Fundação Banco do Brasil, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério do Meio Ambiente, Fundação Nacional de Saúde (Funasa), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Petrobras e Banco do Brasil.
Como conta a coordenadora do Escritório Nacional do CATAFORTE, Rita de Cássia Gonçalves Viana, no universo assistido pelo projeto - 33 redes distribuídas em 14 Estados da Federação e que abrange um contingente de mais de 13 mil catadores e catadoras de materiais recicláveis – elas também representam a maioria. “E mais, desmitificam a máxima popular que assinala a mulher como sendo o sexo frágil”. Dentro dos empreendimentos há quem participa da coleta nas ruas, faz a triagem, carregam e descarregam caminhões e fazem tudo isso embaixo de chuva ou sol, salienta a coordenadora.
Representante da Secretaria Estadual das Mulheres de Materiais Recicláveis (SEMUC-SP), membro da Comissão Nacional do MNCR e presidente da Rede de Cooperativa Regional de Catadores (as) de Materiais Recicláveis do Oeste Paulista (COOPERCOP), Matilde Ramos da Silva Braz conta que não é por acaso que as mulheres acabaram se tornando a maioria na categoria. De acordo com ela, analisando que parte considerável das catadoras é formada por pessoas de baixa escolaridade, muitas vezes com filhos (as) para alimentar e sem opções de trabalhos formais, a catação de materiais recicláveis, seja de forma autônoma, nos lixões, ou mesmo nos empreendimentos econômicos solidários, aparece como uma opção mais viável para as mulheres.
Os homens em situação similar, pontua Roberto, ainda contam com o mercado da construção civil, que não exige grau de formação e oferecem uma remuneração mais atraente.
A representatividade
Esse contingente de mulheres catadoras de materiais recicláveis também representa uma inversão na pirâmide da divisão do trabalho, hierarquicamente masculina. Em muitos empreendimentos solidários, são elas que estão ocupando os cargos de liderança.
A realidade, apontam as entrevistadas, ainda está longe de ser coerente com o percentual de mulheres catadoras, no entanto, enfatiza a presidente da Cooperativa de Reciclagem de Sorocaba (Coreso), de Sorocaba (SP), Patrícia Sene, é questão de tempo, políticas públicas e ações para que essas mulheres assumam patamares de liderança em suas organizações, como no caso dela, que já trabalhou na roça, de empregada doméstica, babá, balconista, até se tornar catadora de materiais recicláveis. “Eu vim para a cooperativa em 2000. Não tinha trabalho, não era qualificada. Com o tempo fui me aprimorando, me qualificando, me apropriando do meu trabalho – que é o que eu gosto de fazer – e hoje sou técnica no que eu faço”, comenta a presidente, que este ano apresenta seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) para sua graduação em Ciências Sociais na Universidade Metodista de São Paulo. O tema? Uma análise sobre as condições de vida dos catadores de materiais recicláveis de cooperativa que preside.
Hoje uma liderança respeitada dentro do MNCR e em outras frentes, Matilde começou a frequentar o lixão, na cidade de Ourinhos (SP), aos 8 anos de idade, para ajudar os avós, mãe e irmãos. Uma vez, recorda, ficou incomodada com um grupo de crianças que foram conhecer o local e, ao chegar, começaram a passar mal, vomitar e reclamar do cheiro ruim. À época, ficou magoada com a atitude, que soou como um desrespeito ao trabalho pesado que desempenhavam. “Saímos do lixão e, depois de três anos, eu voltei e percebi aquele cheiro que os (as) alunos (as) sentiram. Quando estava lá eu não conseguia sentir o cheiro ruim, eu achava que era um ambiente de trabalho, o único para a gente trabalhar”, recorda Matilde, que passou a se envolver com o movimento de catadores (as) locais, participar de congressos e outras ações para o fortalecimento das cooperativas de catadores (as) de materiais recicláveis, culminando na implantação da SEMUC-SP, em 2014, para dar conta das demandas específicas das mulheres dentro e fora da categoria.
“Somos a maioria e precisamos empoderar as mulheres catadoras. E não falo apenas na área do trabalho, mas também da família, creche, escola, saúde, violência da mulher, renda... Discutimos a questão da participação e da representação das mulheres”, resume Matilde, que cita uma frase da filósofa e militante Rosa Luxemburgo como inspiração e mote para o continuísmo da luta: “Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem”.
Conhecedora do universo da catação de materiais recicláveis desde a adolescência, a brasiliense Aline de Souza Silva, membro do MNCR e presidente da Central das Cooperativas do Distrito Federal (Centcoop), rede que conta com 23 empreendimentos solidários filiados, é mais uma dessas líderes que impulsionam a luta dos (as) catadores (as) de materiais recicláveis no Brasil e o empoderamento da mulher catadora nesse universo.
Em 2002, quando os pais perderam sua moradia e passaram a viver em uma ocupação irregular, no Distrito Federal, é que começaram a trabalhar com a catação de materiais recicláveis.
Foi quando uma pastoral de evangelização viu o trabalho deles e de outras pessoas em situação similar que deram início a um processo de organização em cooperativa. “Foi formada a cooperativa e fomos participar de uma rede de comercialização conjunta, descobrimos direitos, conhecermos o MNCR.
Dentro da cooperativa, a adolescente catava, separa materiais, e também ajudava na diretoria, fazendo controle. Em 2011, participou de uma capacitação e perceberam o potencial de trabalho de Aline, que passou para a Secretaria Geral até ser indicada para presidente da rede.
Também representante das mulheres catadoras, Aline reforça que os homens, em sua maioria, desempenham funções logísticas nos empreendimentos, enquanto todo o outro tipo de trabalho fica a cargo das mulheres. “Dos 23 empreendimentos da rede, quatro ou cinco têm presidentes homens. Hoje a mulher catadora está tendo mais representatividade e continuamos trabalhando o empoderamento delas, mas que isso aconteça da forma correta, para somar e não fracionar o empreendimento”, pontua, reiterando que homens e mulheres catadores (as) precisam trabalhar em unidade”.
Hoje a mulher catadora está tendo mais representatividade e continuamos trabalhando o empoderamento delas, mas que esse aconteça da forma correta, para somar e não fracionar o empreendimento”, pontua, reiterando que homens e mulheres catadores precisam trabalhar em unidade
As lideranças, no entanto, não estão concentradas apenas nas regiões mais centrais do País. Se há alguns anos perguntassem a catadora de materiais recicláveis Egrinalda dos Santos Silva, de João Pessoa (PB), como vislumbrava o futuro, nem de longe seria o que vive hoje, como presidente da cooperativa Catajampa (PB). “Jamais imaginava ser a representante de uma cooperativa, estar me articulando, ter um conhecimento tão amplo...”, comenta ela, que há 20 anos trabalha como catadora de materiais recicláveis. Egrinalda que começou catando os materiais na rua, passou pelo lixão – lugar onde chegava a disputar restos de alimentos com urubus – se emociona ao lembrar todo o processo até a formação da cooperativa, e agora a articulação em redes, uma das diretrizes do projeto Cataforte, a fim de organizar empreendimentos de forma coletiva, para que comercializem os produtos em escalas, sem a interceptação de atravessadores, e obtenham um preço comum e maior com a venda.
Mais do que uma melhoria nas condições de trabalho e renda a partir do projeto, ela destaca o empoderamento alcançado com a formação nas capacitações, o conhecimento obtido através de reuniões, encontros, viagens, e trocas de experiências com catadores e catadoras de outros locais do Brasil. “Já fui pra São Paulo, Brasília, Bahia. Quem diria? E de avião”, complementa ela, que faz um contraponto desse momento com aquele vivido anos atrás, ainda no lixão. “Meu filho dizia: mainha, vou dormir para esquecer a fome”.
Projeto para o empoderamento
Em sua terceira fase, o projeto de alcance nacional, Cataforte III – Negócios Sustentáveis em Redes Solidárias, tem a frente também uma mulher, a coordenadora geral, Rita de Cássia Gonçalves Viana. Com a experiência de mais de 16 anos com o Centro de Estudos e Apoio ao Desenvolvimento, Emprego e Cidadania (Ceadec), entidade que desenvolve o Escritório Nacional do Cataforte, ela reforça a importância das ações do projeto hoje, que visam a capacitação, o fortalecimento e o empoderamento dos catadores e catadoras de materiais recicláveis, consequentemente, das mulheres, maioria também nas 33 redes assistidas pelo projeto.
E são essas mulheres catadoras que endossam a afirmação de Rita, ao reiterarem a importância das ações do Cataforte no desenvolvimento e fortalecimento das bandeiras de lutas da categoria dos catadores e catadoras de materiais recicláveis.
“Participamos das três fases do Cataforte e contamos com o suporte da Cáritas de Recife (PE). Fomos nos organizando, vendo a necessidade de ter uma associação... Fomos tendo conhecimento. Antes vendíamos os materiais sozinhos, agora sabemos que é importante ser uma rede. O Cataforte foi essencial, sem ele ainda estaríamos como um cachorrinho xucro, sem reconhecer que temos valor, com baixa autoestima”, defende Egrinalda.
Para a presidente da Coreso, mais do que o fortalecimento e estruturação das redes de empreendimentos solidários, o Cataforte também abrange outras frentes como valores, conhecimentos múltiplos e empoderamento. “Discutimos a questão de gênero, respeito, questões sobre machismo... Sempre nos reunimos e tratamos de questões visando o empoderamento”, afirma Patrícia.
Aline, da Centcoop, frisa que as fases anteriores do Cataforte (I e II) foram de suma importância para fortalecer a luta dentro dos empreendimentos econômicos solidários, principalmente na emancipação e fortalecimento da categoria. Além de capacitar para o associativismo, comercialização em rede, entre outras ações, preparou os (as) catadores (as) de materiais recicláveis para essa terceira fase, uma continuidade que visa, de fato, oportunidades negociais. Para ela, essas ações refletem em melhorias para essas mulheres cujos empreendimentos participam do Cataforte III.