“Eu, minha mãe e outros irmãos trabalhávamos no antigo lixão
de Fortaleza/CE, que já está desativado há mais de 18 anos. A vida era dura,
mas era a realidade que eu conhecia, então era feliz.
Com o fechamento do lixão os catadores, incluindo minha família, sem terem pra onde ir, ocuparam um espaço próximo ao lixão desativado
e criaram uma associação, a Ascajan.
Minha mãe permaneceu na cooperativa trabalhando na catação,
eu, ainda era muito jovem, mas já sentia a necessidade de buscar outros
caminhos e possibilidades, e comecei a realizar trabalhos como jovem aprendiz.
A situação não era das melhores, faltava emprego e com 18
anos eu retornei para a catação.
Foi quando comecei formar minha família, casei, tive filhos e
sempre buscando novas possibilidades, voltei a estudar.
Foi aí que um universo se abriu. Mais madura, comecei ter um
outro olhar sobre a nossa profissão, sobre a nossa atividade na catação,
comecei a visualizar uma questão mais política, mais humana até, porque quando
você é sujeito, as vezes nem você se reconhece como sujeito de direito, você
não se reconhece como pessoa que merece o melhor, como um profissional que está
atuando no meio ambiente, pra nossa sociedade, para o meio em que a gente vive.
Então fui começando a despertar pra isso, entender esse
contexto todo, o trabalho que nós fazemos, ele avança uma dimensão enorme, ele vai além do que
criar matéria a partir do reciclável, vai além de uma montanha de lixo como é
visto por muitas pessoas.
A nossa profissão de catador vai além de tudo isso, e por trás
de tudo temos nós, seres humanos, aonde tem
o empoderamento feminino, porque na
catação somos a maioria mulheres, não só a frente das associações, mais
triando, coletando, organizando, administrando, e na luta por melhores
condições de trabalho também, por reconhecimento, por políticas e a gente supera
tudo isso além de ser mãe, além de ser filha, ser esposa, estudante, e ser
militante também, daquilo que a gente acredita.
A inquietude me fez empoderar-me de tudo isso e passar para os outros
companheiros. Entender o nosso papel na sociedade me trouxe como missão mostrar
que nós enquanto catadores de materiais recicláveis estamos fazendo muito, mas
podemos fazer muito mais principalmente por nós mesmos.
Cada um de nós temos nosso papel nesse contexto social, mas
ser reconhecido, se qualificar, buscar
tudo isso não é fácil, a gente vai contra um sistema que empurra pra trás , é o
capitalismo, é o antissocialísmo, são pessoas que acham que nós não somos
merecedores de respeito, de dignidade, de ter condições de trabalho melhores. Então,
a gente vai contra tudo isso, mostrando que somos profissionais, que somos
seres humanos, que estamos aqui para contribuir não só o meio ambiente, mas com
a sociedade também, é uma questão de saúde, uma questão de bem estar, uma
questão social.
Despertar pra esse mundo trouxe muitas alegrias e muita
satisfação, mas também vieram muitas dores e contradições. Porque na medida que
você enxerga tudo isso, você enxerga muito mais preconceito, exclusão, esquecimento.
Então tudo isso vem junto, na medida que eu me reconheço como sujeito, eu
começo a identificar o que me trouxe para esse mundo, o que trouxe meus
companheiros para a catação, uma exclusão de mercado, problemas com vicio, o
esquecimento de uma certa área, porque a periferia vai sendo afastada dos
grandes polos, afastada de uma economia e a gente vai criando nossa tribo e
buscando sobrevivência e nosso meio com honestidade, com muito trabalho,
através da catação que é o que traz pra
dentro de nossas casas o pão nosso de cada dia , que é o que faz a gente criar
nosso filhos com dignidade, como foi com a minha mãe que criou nós e depois a
gente seguiu esse mesmo caminho com dignidade e respeito pela profissão.
Despertar pra isso foi muito bom e é válido porque hoje eu
posso contribuir com a minha categoria, hoje eu posso mostrar que vale a pena
ir além, triar é importante e vai continuar sendo, mais nós temos que dar
passos políticos, passos dentro da comercialização, temos que buscar e lutar por
aquele que está sem força, para aqueles que precisam se empoderar ainda de tudo
isso.
É uma alegria esse despertar, dá uma satisfação muito grande, mas também traz muitos desafios, que é preciso estarmos de mãos dadas para conseguir vence-los e buscar fazer a diferença”.
Lílian
é catadora da Ascajan, mobilizadora do Projeto Cataforte III, presidente da
Rede Ceará, está cursando o último ano de Serviço Social.